segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

Os cheiros de um poema!



    O vídeo em anexo merece uma “rodinha a vermelho”no canto superior direito do écran. Tem imagens que chocam. São controversas. Às tantas, acabamos por nos distrair, fixando a atenção apenas na sequência cinematográfica e esquecemos o som e o ritmo das palavras: a parte mais importante! O vídeo, obviamente ficcional (nada do que nele está presente é verdadeiro!), serve de suporte a um texto ("Espantalhos") do poeta argentino Oliverio Girondo (Buenos Aires, 1891-1967), que agora está ser descoberto em Portugal: Edição Língua Morta. Disponível na livraria “Poesia Incompleta”.

Além do que está no vídeo, diz-nos o poeta que:
“…Mal amanhecia, voava do quarto para a cozinha, da sala para a despensa. A voar preparava-me o banho, a camisa. A voar fazia as compras, terminava os seus afazeres.
Com que impaciência esperava que ela voltasse, voando, de algum passeio pelos arredores. Ali, bem longe, perdido entre as nuvens, um pontinho cor-de-rosa. «Maria Luísa! Maria Luísa!»… e em poucos segundos abraçava-me com as suas pernas de pluma, para me levar, voando, a qualquer parte.
Durante quilómetros de silêncio planeávamos uma carícia que nos aproximava do paraíso; durante horas inteiras habitávamos uma nuvem, como dois anjos, e de repente, caindo em espiral, como uma folha seca, a aterragem forçada de um espasmo.
Que prazer ter uma mulher tão ligeira…, ainda que, de vez em quando, nos faça ver estrelas! Que volúpia passar os dias entre as nuvens… e as noites num só voo!
Depois de conhecer uma mulher etérea, pode achar-se algum atractivo numa mulher terrestre? Existirá alguma diferença entre viver com uma vaca ou com uma mulher que tenha as nádegas a setenta e oito centímetros do chão?
Eu, pelo menos, sou incapaz de compreender o interesse de uma mulher pedestre, e por mais que tente, não consigo sequer imaginar que se possa fazer amor senão a voar.”
    O texto deste poeta vanguardista, entre outros aspectos, está impregnado de odores. Chama a atenção para as sensações corporais. Os cheiros acompanham, fazem parte do Amor. Exalam dos nossos corpos. Há quem não tolere, com convicções inabaláveis, o cheiro do suor das axilas ou de outras regiões anatómicas. Há quem gaste rios de dinheiro com perfumes e after-shaves. Amar alguém é também conviver com os seus cheiros. Os bons e os outros. Embrenharmo-nos nos odores. Aceitá-los. Tirar partido deles. E apreciar o sabor da pele, num momento fresca e transparente, resplandecente, e, uns anos mais tarde, madura e sábia. Acolhendo os sentidos aceitamos a nossa humanidade.

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