sábado, 31 de dezembro de 2011

A Figura da Década e o Livro do Ano

  Estimado Colega:
  Sei de antemão que muitos dos possíveis leitores deste post vão considerar as escolhas que agora faço fora de contexto e, quiçá, a despropósito. Não fará muito sentido eleger “figuras da década” quando esta ainda  agora começou. Prefiro correr o risco porque tu mereces, Exmo Colega permita que o trate com tanta  à-vontade, aquela que costuma estar associada às cumplicidades! Considero fascinante o que fizeste, David Servan-Schreider, procurando desvendar o rosto humano da Medicina, que no último século percorreu caminhos bizarros, em que a par de um extraordinário desenvolvimento tecnológico (RMN e outros que tais!) foi esquecendo a sua essência: a relação médico-doente, o que lhe deu consistência como disciplina científica... Foi como se tivesse viajado sem sair do lugar! O que fizeste em duas décadas ajudou-me a reacreditar que a Medicina tem futuro! O teu campo de trabalho é aquele em que sempre me situei: as Neurociências, hoje em dia tanto em voga (leia-se, na moda!). Mas tu marcaste a diferença, revelando que só credível estudar as sinapses cerebrais e as monoaminas a partir da prática clínica. Há para aí tanta gente a falar do cérebro e do SNC (sistema nervoso central, desculpem o calão técnico!) sem ter a experiência única de lidar com pessoas, sem situar-se na complexidade da vida quotidiana, aquela que é e sempre foi o objecto de estudo preferencial dos Psiquiatras. 
    
 Elegi o teu último livro “Antes de Dizer Adeus” como Livro do Ano não tanto por ser  um poderoso testamento existencial mas, acima de tudo, pela serenidade e o modo objectivo como falas da morte, esse outro tabu (com o sexo!) que tanto incomoda os ocidentais. Fazem falta as palavras sábias para aceitarmos o que provoca mal-estar...
Tu morreste a 24 de Julho deste ano. Numa nota final, assinalo a tristeza e o inconformismo de não ter tido oportunidade de me cruzar contigo nas andanças da vida ou, em particular, nos Congressos e outros espaços de  encontro dos médicos (C'est dommage que vous ne soyez pas là!). Teríamos certamente passado uns agradáveis momentos em amena cavaqueira, falando sobre coisas triviais, do género: a importância do estilo de vida na homeostasia do nosso corpo ou o papel específico do córtex frontal na definição da identidade do Homo Sapiens. Banalidades excêntricas mas singulares para a compreensão da nossa espécie... 
Despeço-me com amizade
T.

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