“No tempo em que
havia quintas e hortas em Lisboa, e se ia para lá aos domingos, eu ficava em
casa. E em vez de ir para as quintas e para as hortas, em vez de apanhar couves
e de ordenhar ovelhas, lia poemas que falavam das quintas e das hortas de
Lisboa, como se isso substituísse o ar do campo e o cheiro dos estábulos. É por
isso que hoje, quando me lembro dos arredores de Lisboa onde havia quintas e
hortas, o que lembro são as horas de leitura de poemas sobre esses arredores, e
os passeios que eles me faziam dar aos domingos, substituindo os lugares reais
com mais exactidão do que se eu tivesse ido a esses lugares. Visitei, assim,
quintas e hortas pela mão do Cesário Verde e do Álvaro de Campos, e soube por
eles tudo o que precisava de saber sobre os arredores de Lisboa, que hoje já
não existem porque Lisboa entrou por eles e transformou as quintas em prédios e
as ovelhas em automóveis.
Não me
arrependo, então, de ter lido Cesário e Campos enquanto ouvia balir os rebanhos
que vinham pastar a Lisboa, nas traseiras do meu prédio, onde as mulheres das
hortas vendiam leite e queijo fresco, às escondidas da polícia. Hoje, já não
sei onde se escondem essas mulheres, nem há quintas e hortas em Lisboa; mas
ficaram os poemas que ainda me levam a passear às quintas e hortas que já não
existem, onde apanho couves e ordenho ovelhas por entre prédios e automóveis”.
in: Nuno Júdice, O
Estado dos Campos, Lisboa, Dom Quixote, 2003
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